quarta-feira, 18 de novembro de 2020

De Catarina, o cante, as ruas e Baleizão

Ainda só estou na segunda publicação e já estou a mudar ligeiramente o intuito do blogue. Também os blogues são compostos de mudança. Mas não deixa de também estar relacionado, também são pessoas e toda a gente que cabe na minha memória sobre uma pessoa em específico.

A primeira vez que ouvi falar de Catarina Eufémia andava na escola primária de certeza absoluta, e tenho essa convicção porque trocávamos moradas para nos escrevermos nas férias. Embora não tenha a certeza se alguma vez escrevi a alguém, mas lembro-me de receber pelo menos uma carta de uma colega em Agosto. Mas deve ter sido numa destas ocasiões que descobri que uma das minhas melhores amigas, ainda hoje o é, morava da Praceta Catarina Eufémia.

E esta coisa do nomes das ruas interessava-me, ainda hoje me interessa na realidade. Mas interessava de tal forma que ainda me lembro de ter uma discussão na escola primária com uma colega, além de colegas de turma, morávamos no mesmo prédio, uma de nós dizia que morava na Rua Movimento das Forças Armadas e outra dizia que morava na Rua do M.F.A., lembro-me de estar muito chateada e ir contar ao meu pai aquele desentendimento, quando ele me explicou que o Movimento das Forças Armadas era o M.F.A. e me contou o que era afinal esse movimento.

Mas além de gostar muito de nomes de ruas, também gostava muito de nomes de pessoas, não passasse eu horas à procura de nomes estranhos nas listas telefónicas. E deve ter sido aí que um dia disse à minha mãe "Oh mãe, a Cláudia mora na praceta Catarina Eufémia... que nome estranho Eufémia" e foi aí pela primeira vez me contaram quem foi Catarina Eufémia. Espectacular, uma mulher ceifeira que morreu a lutar pelos seus direitos, deve ter sido isto que fez brotar o pequeno ser comunista que havia em mim.

Entretanto, as memórias de algo ligam-se e relacionam-se como muito mais coisas obviamente. E foi no café da minha avó, café, tasca, restaurante, casa de pasto, taberna, fosse lá o que fosse que continuei a ouvir falar de Catarina Eufémia, mas de outra forma. Ao fim da tarde, costumavam-se encontrar alentejanos lá. Traziam o farnel, cortavam o pão com o canivete, pediam para aquecer às vezes a comida, ou seja basicamente só consumiam vinho ou outra bebida. Fazia-me alguma confusão a minha avó, a minha mãe e a minha tia acharem normal terem uma casa cheia e venderem quase nada, mas deve ter sido assim que também descobri em mim essa dicotomia que ora parece comunista, ora parece católica. Afinal, se pouco têm, não os vamos obrigar a consumir. Mas a pessoa tem um café para ganhar dinheiro? Tal disparate.

Mas como eu ia dizer, entre comida e bebida lá iam cantando, e se a mais cantada era:

"Eu ouvi um passarinho,
Às quatro da madrugada,
Cantando lindas cantigas,
À porta da sua amada.
Cantando lindas cantigas,
À porta da sua amada.

Por ouvir cantar tão belo,
A sua amada chorou.
Às quatro da madrugada,
O passarinho cantou.
Às quatro da madrugada,
O passarinho cantou."

Às vezes também cantavam:

"Ó Baleizão, Baleizão!
Ó terra de Catarina,
Onde nasceu e morreu
Por uma bala assassina"

Além disso, às vezes chateavam-se e lá um dizia "Olha que eu sou de Baleizão" que era como quem dizia, sou forte, sou da terra da Catarina.

Mas como a minha história sobre as memórias pessoais de Catarina Eufémia não acabam aqui, tinha uns 16 anos provavelmente, quando eu e uns colegas da escola decidimos ir passar umas férias a uma pousada de juventude. Isto no Inverno. E escolhemos a pousada com os preços mais baratos de todos, a pousada de juventude de Beja. Entretanto descobrimos depois de lá estarmos que não tínhamos nada para fazer. Mas foi divertido na mesma. Um dia decidimos apanhar o autocarro e ir até Serpa passear. E onde parou o autocarro? Em Baleizão, mesmo, mesmo em frente da estátua de Catarina. E lembro perfeitamente de pensar "Já vim a Baleizão".

E porquê toda esta história?
Porque conheci uma pessoa com o apelido Baleizão e sempre que a vejo todas estas memórias me vêm à cabeça. E na minha cabeça ecoa "Ó Baleizão, Baleizão"

E esta é a história de quem?
De Catarina Eufémia?
Da minha amiga e da sua morada?
Dos alentejanos que cantavam no café?
Do que dizia "sou de Baleizão"?
Dos colegas com quem fui a Baleizão?

É de todos, é minha... São as memórias entrelaças em pessoas diversas. As pessoas são para nós as memórias que temos delas. E estas estarão sempre ligadas a alguém que viveu muito antes de mim.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

A minha avó Lili

A minha avó Lili nasceu em 1932, segundo consta, no dia 3 de Maio. Nasceu entre a Vila Nova de Caparica e o Lazarim, filha de pais não casados e por isso, à data, seria considerada filha ilegítima, isto se tivesse sido registada. O meu bisavô Luís, seu pai, achava um despropósito registar uma filha, gostaria de tecer considerações sobre o motivo, mas segundo sempre ouvi era só mesmo por estupidez. O irmão e a irmã, ambos mais velhos, eram registados, uma vez que antes do nascimento da minha avó ao que consta houve um tipo de fiscalização para obrigar os pais a registar os filhos. Como eram registados foram à escola, a minha avó, não. Os pais ainda decidiram pagar a uma professora particular para a ensinar, mas como eram pobres, acho que não foi a mais que duas ou três aulas. E foi assim que a minha avó Lili teve de aprender sozinha a ler e a escrever, o que sabia fazer, não muito bem, mas muitíssimo bem para os estudos que tinha ou melhor que não tinha. Sabia ainda melhor fazer contas, fazendo já na sua velhice sucesso entre os jovens universitários que não percebiam como fazia contas tão rápido e bem. Mal eles sabiam que nem à escola tinha ido.

Como não era registada, não existia oficialmente e por isso não podia casar. E esse foi o motivo que levou a que fosse registada já depois dos vinte anos, nesse momento passou a ser oficialmente Eva Claudina Figueiredo Paulo de Oliveira. Já que não existiu durante vinte anos, depois passou a ter direito a nome de realeza. Não sei, agora que penso nisso, se alguma vez tinha sido Eva antes de ser registada, uma vez que pelo que ela dizia sempre foi Lili. Também é algo que nunca saberei.

Casou, teve duas filhas, entre as quais a minha mãe e parece que mais dois filhos que não escaparam ao parto. Também a minha mãe provavelmente teria essa sina, se não tivesse nascido de cesariana em 1958, mas isso fica para outra história.

O casamento era à moda da altura, ou seja, o meu avó não era exatamente um marido agradável ou seria um marido comum à moda dos tempos, onde bater na mulher era algo que não se estranhava. Incrivelmente nem a minha avó, nem o meu avô bateram alguma vez nas filhas. A minha avó ficou viúva com quarenta e poucos anos e passou outros tantos vestida de preto.

Pessoa de trabalho sempre, gostava de estar no seu canto, sossegada e calma, quase como se não existisse, talvez como nos seus anos de infância onde realmente para efeitos legais não existia. Era muito carinhosa e já a minha mãe adulta, acordava-a com beijinhos e cortava-lhe fruta para o pequeno-almoço. Avó doce e chata que achava que as netas não deviam brincar muito, não fosse ficarem cansadas, gostava de me dar beijos repenicados quase dentro dos ouvidos e dizer-me "és os castelinhos, mijadonxo, escagadonxo".

No final da década de 1990, já eu estava na adolescência decidiu ser baptizada, sim eu fui ao baptizado da minha avó. O padre que já a conhecia há anos, conhecendo a sua faceta de boa pessoa, decidiu explicar-lhe durante o sermão, "devemos ser bons, mas não devemos ser parvos", não sei se ela percebeu a indireta.

Dava-me muito jeito ser neta dela, uma vez que se precisasse de alguma coisa, bastava dizer aqui no Monte de Caparica, "sou neta da Lili". Dizia isso sobretudo quando a minha mãe me pedia para levar sapatos ao sapateiro, nunca percebi se era para o sapateiro os arranjar melhor.

Cresceu e viveu a vida toda na casa de pasto aberta pelo seu pai nas Casas Velhas, tornando-se a sua figura central, o nome da casa passaria a ser conhecido por todos por "A Lili" ou "A viúva". E era aí onde mostrava os seus dotes numéricos aos universitários pasmados.

Adoeceu na casa dos setenta anos, doença de Alzheimer, foi perdendo as faculdades aos poucos, morreu em 2014, dois anos depois de falecer a filha mais nova, a minha mãe. Nunca percebeu a falta da filha e nesses dois anos às vezes chamava-me "Belinha".

Assim, começo este blogue que tem como objetivo contar histórias minhas e de outros. E começou assim com a da minha avó Lili, D.Eva Claudina.

De Catarina, o cante, as ruas e Baleizão

Ainda só estou na segunda publicação e já estou a mudar ligeiramente o intuito do blogue. Também os blogues são compostos de mudança. Mas nã...